Praia dos Fogos

Quando estou prestes a apertar o gatilho, algo penetra meu coração. Sinto a dor queimando-me por dentro e acabo por soltar a arma e cair no chão, de costas. Olho para o lado e vejo-a. Elizabeth. Com uma arma na mão, que acaba de soltar. Tudo parece estar estranhamente em câmera lenta enquanto o revólver atinge o chão, e depois Elizabeth se joga ao meu lado e começa a falar, como se não tivesse mais tanto tempo. Eu não acho que ela tenha. Tudo está embaçado e junto com as palavras de Elizabeth, um jorro de memórias me atinge. Nossa mãe, quando eu era bem pequeno e Elizabeth apareceu subitamente em casa, em uma visita surpresa. O modo como, quando eu atendi a porta e ela viu minha irmã da cozinha e saiu correndo, abraçando-a com força. Com lágrimas nos olhos. O dia em que meu pai morreu, e minha mãe olhou para o céu e murmurou um "Ele merece os Campos Elíseos". Na época, eu não entendi. Elizabeth estava ao lado dela, e murmurou "Ele estará lá". Quando Calígena apareceu e destruiu nossa casa, levando-nos embora. Eu tentara lutar, mas fora inútil. Elizabeth apertou carinhosamente minha mão, e para minha própria surpresa, eu apertei a dela também. A vida não é feita de um momento, Elizabeth. Ela é feita de uma mistura de todos eles. Nada ocorre em um instante, e sim em vários deles. Mas só conseguimos perceber nossos erros quando já é tarde demais, e registramos esse instante como o momento do erro. E, naquele instante, eu acho que a perdoei. Quando as lágrimas surgem, quentes, pela minha bochecha, eu sei que a amo. Ela era, e ainda é, apenas uma criança. Seria injustiça responsabilizá-la por tudo aquilo, e só compreendo isso agora. Talvez porque, nesse instante, estamos no fim. E caso eu não a perdoe agora, jamais a perdoarei. Apenas passarei o resto da minha vida pensando nisso enquanto fico nos Campos de Punição. Um instante. Eu poderia dizer que foi o instante em que tudo se acertou, mas ao mesmo tempo acabou. Mas eu sei que se estamos aqui agora, foi porque nossos erros e acertos nos colocaram aqui. Sinto a vida se esvair, e agora sei que não tenho mais tempo. Sorrio debochadamente, e murmuro minhas últimas palavras. Acho que te vejo nos Campos de Punição. E quando tudo começa a escurecer e eu não consigo mais focalizar o rosto de Elizabeth, sei que estou errado. Eu não acho que ela irá para os Campos de Punição comigo. Pois, de qualquer jeito, se realmente quiserem puni-la, só é necessário colocá-la nos Campos Elíseos, sem poder jamais me salvar ou encontrar. Mas no fundo, ela tem um bom coração. Ninguém quer notar, no entanto isso não muda nada.

Só tenho tempo de ouvir o tiro. Vejo o sangue sair do peito de Jonathan, e ele cai no chão. Grito. Coloco a mão na boca, também caindo de joelhos no chão. Esqueço-me que ele estava prestes a me matar; tudo que sei é que ele está caído no chão, o sangue esvaindo de seu corpo. Lembro-me de todas as alucinações que tive na Prisão, e como elas agora pareciam reais. Eu odiava Jonathan e até pensei em matá-lo, mas, vê-lo assim, agora, pensando na brutalidade da coisa, me fez fraquejar. Assassinado na minha frente. - Pela própria irmã. - Sussurro. Minha visão está embaçada e me sinto tonta. Desejo desesperadamente algum remédio. Preciso deles, ou não vou conseguir aguentar. Não consigo nem mesmo ficar de pé. Tenho consciência que Elizabeth está ao lado dele, sussurrando alguma coisa, mas não consigo ouvir. Só ouço a voz da Caçadora preenchendo minha mente: Querendo ou não, Bethany, ele está morto. Você podia ter feito algo. Isso só prova como eu tinha razão; vocês são monstros. Você podia ter feito algo. Podia. Podia. Não quis. Não quer. Você é como eu. Fecho os olhos. Finco a unha no meu braço até que a dor me consuma e eu não pense mais na Caçadora. Quando abro os olhos, Jonathan já se foi. Elizabeth está chorando, mas não entendo nada. Só consigo ouvir o som do tiro, repetidamente, e maneira como ele olhou para a irmã. O sangue saindo do seu corpo. O sangue que agora estava na areia, no meu corpo, no corpo dela.

Apenas depois de um tempo que ouço a voz de Elizabeth. Percebo que agarro a areia com firmeza, como se fosse o meu único ponto de apoio. Talvez fosse. O sangue de Jonathan continua misturando-se aos grãos e aos nossos corpos. Olho para seus olhos cinzas e, por um momento, só consigo ouvi-la pedindo aquele favor. O mundo parece estar correndo mais lentamente, assim como o sangue dele. E, como só consigo pensar naquele líquido escarlate, quase não distingo as palavras de Elizabeth. Isso tudo me lembra aqueles dias horríveis, e, principalmente, as alucinações. Mas preciso prestar a atenção. Ela queria que eu avisasse algo para Michael e Alexis. Que tudo que ela fez foi pelo irmão. Respiro fundo; eu não devia nada a ela. Principalmente depois de tudo que ela fez. Mas, da pior maneira, aprendi que guardar mágoa e ódio não resulta em coisas boas. E eu não posso guardar mais. Riley partiu e já me deixou. Ela está bem. E agora eu também tinha que deixá-la, de uma vez por todas. Naquele momento, olhando nos olhos da garota que matou minha irmã, alguma coisa acontece. Eu a entendo. E farei isso por ela, pois, naquele momento, nós somos iguais: duas garotas perdidas. Duas garotas sem o irmão. Duas que já foram torturadas, tanto fisicamente quanto emocionalmente. Nós somos e sempre fomos muito parecidas. E sei que ela acabara de me salvar, ao matar o irmão. Eu faço. Sussurro. Minha voz sai tremida, mas sei que ela ouviu. Não há mais nenhum barulho ao redor de nós, a não ser o barulho das ondas. É um ótimo lugar para morrer, se fosse para pensar só desse lado. Então, alguma coisa começa a acontecer. Tenho um sentimento estranho enquanto ela pede para procurar a mãe dela. Um deja vú, algo estranho que se acomoda sobre meu peito. Foi a mesma coisa que Cassandra disse quando estava morrendo. Encaro-a. Eu não devia estar sentindo isso. Ela não estava morrendo. Por que então dizia isso? Então percebo. "Não conte que morremos". Meus olhos deslizam para a arma em sua mão, que ela havia pego há apenas alguns segundos atrás, e entendo. Não, Elizabeth. Não, não, não! Não faça isso! Tento me levantar, jogar a arma longe. Desviar a mão, empurrá-la, qualquer coisa. Mas é tarde demais. Mais uma vez, só tenho tempo de ver a arma encostada na sua cabeça e ouvir o som do tiro. Grito, o mais alto que posso. Não me importo. Mal consigo ouvir o som que sai da minha boca. Como estava há apenas alguns centímetros dela, eu vira tudo. E com detalhes, ainda. A arma penetrando sua cabeça. Seu corpo caindo, flácido, a mão morta no chão. A arma rolando para um canto. O sangue espalhando pela areia, se juntando ao de Jonathan. Sinto lágrimas espalharem pelo meu rosto, o que não faz sentindo. Eu não tinha motivos para chorar por ela, mas a crueldade e a tristeza de tudo aquilo, e a maneira como os dois estavam perdidos me acertam em cheio. Não consigo enxergar mais nada pela maneira que meus olhos estão embaçados. Só me sinto ajeitando o corpo de Elizabeth, colocando-a virada para cima, com os olhos fechados. Ao lado do irmão. O sangue já é tanto, e tão acumulado, que não dá mais saber de quem é qual. É o mesmo sangue agora. Dois irmãos, separados por tantas diferentes razões, mas, apenas agora, unidos. E eles sempre foram, apesar de não perceberem. Uma onda atinge levemente os corpos, limpando um pouco do sangue, mas logo vai embora. Não sei o que estou fazendo. Só consigo lembrar dos rostos de todos os meus amigos e quem amo mortos pela Caçadora, a maneira como o sangue se juntava ao meu corpo, como eu os via sofrendo sem que pudesse fazer nada. Enquanto eu também sofria. Caminho alguns passos, tentando me afastar daquilo, mas logo meus membros fraquejam, e eu estou no chão de novo. De joelhos. Olhando para a areia; para o mar; para o céu; para os dois. Não sei. Aquilo tudo parece irreal. Talvez seja só um pesadelo estranho do qual vou logo acordar. Abraçada com Freddie. Ao lado de Jack. Percebendo que é só minha cabeça. Ou talvez, eu acorde encarando a Caçadora, como ela havia dito. Aplicando sua última e melhor tortura. Olho para a arma que rolou da mão de Elizabeth. Ela havia parado apenas há alguns centímetros da onde eu estava agora. Meu próprio corpo havia me guiado até lá sem que eu percebesse. Olho para ela, sentindo sua superfície fria ao pegá-la. Desvio o olhar para os dois, deitando na areia. Não posso fazer isso. Não posso. Não posso. Não posso abandonar os dois. Jack e Frederick. Sinto mais lágrimas caindo, e não sei quanto tempo se passou. Talvez eu tenha até desmaiado, mas não consigo entender o estado em que estou. Do que adiantava tudo aquilo? Essa escuridão tem algum nome? Essa crueldade? Esse ódio? Como ele nós encontrou? Como chegamos até isso? Ele se implantou nas nossas vidas ou nós os procuramos e os abraçamos? O que aconteceu conosco? Com nossos pais, que mandaram e criaram filhos para serem mandados para uma guerra? Eles esperam nosso retorno seguro, mas sabem que nos perderemos pelo caminho. Quando perdemos o caminho? Quando fomos consumidos pelas sombras? Engolidos pela escuridão. Ela tem um nome? Penso em Amber. Em Alma. Em várias pessoas que poderia citar, mas... elas também foram engolidas por essa escuridão. Não havia alguém para culpar a não ser nós mesmos. Passo horas, talvez minutos, ou talvez segundos pensando nisso. O sangue dos dois penetrando minhas roupas, a mão na arma. Olhando para o céu, para as estrelas que agora estão no alto, e pensando que, mesmo cercada de seu brilho dourado, eu só consigo ver a escuridão.